"De-escalation" e coisas que ativistas devem saber


Ohayou, minna!

A frase "tem cuidado com o que desejas" costuma ser associada a coisas negativas, mas desta vez aconteceu-me algo bastante positivo: eu queria ter férias, e tive. Porquê? Porque a empresa onde eu vou trabalhar precisava de um documento que ainda não pude levantar, pois é levantado na minha faculdade e ela esteve este tempo fechada para férias. Então tenho estado em casa, a jogar Skyrim e adiantar outros pequenos objetivos. Não que eu possa chamar o novo "Draw this again" que estou a fazer de pequeno, mas still. 

Este post é o resultado de uma coisa que tenho andado a tentar recentemente, com sucesso variado: De-escalation. Consiste basicamente em acalmar uma situação ou discussão, e isso passa por me acalmar a mim. É difícil pois obriga a pessoa que inicia essa tática a aperceber-se do que se está a passar, por de parte o que está a sentir por muito válido que seja e tentar abordar as outras pessoas envolvidas de forma firma, mas pacífica, pouco ameaçadora e demonstrando estar disposta a ouvir e entender o que ela tem a dizer. De facto, isto é muito sobre saber ouvir e, caso seja seguro suficiente discordar, fazê-lo da forma mais agradável possível. E é engraçado porque eu sinto que fazia isto quase inconscientemente quando era criança mas, nos últimos anos, tenho visto coisas que me têm provocado tanta raiva, sensação de injustiça, e me magoam ou magoam outras pessoas, que a minha paciência encurtou drasticamente. Mas isso só resulta em que eu nunca consiga transmitir o meu ponto - porque as pessoas recusam-se a ouvir vozes exaltadas - e às vezes acabo por magoar pessoas que só me querem bem e arrependo-me disso. Então não só esta tática é muito importante para ativistas em geral, como pode ser útil no dia a dia, e decidi partilhar um bocado sobre o assunto. Começando por disclaimers extremamente importantes...

Notas
  • O objetivo deste post é apenas ensinar algo eficaz para acalmar variadas situações. Não quer dizer que isto deva ser aplicado em casos onde uma discussão acesa não apresenta consequências, nem implicar que há algo de superior nesta técnica. De facto, embora seja uma ferramenta útil, está longe de ser a solução ideal, já que muitas vezes implica validar perspetivas que são completamente inaceitáveis pela crueldade delas e, embora tentar entendê-las seja um possível começo par as rebater, nem sempre será possível contra-argumentar, pois isso pode fazer com que as outras pessoas voltem a perder a paciência. 
  • Raiva, ofensa, dor e frustração - sentimentos muitas vezes resultantes de injustiças sofridas e falta de direitos - são perfeitamente válidos. Atrevo-me a dizer que são válidos mesmo em pessoas que tomam posições "opressoras", pois mesmo que as suas soluções sejam erradas, isso não impede que possam detetar certos problemas ignorados pela oposição, nem anula as várias experiências que tiveram. Para além disso, as pessoas gostam de agir como se emoção fosse o oposto da racionalidade, mas um argumento pode ser perfeitamente lógico e apresentado de maneiras que denotam emoções extremas. Berrar, chorar, insultar... podem ser coisas desagradáveis e claro que ninguém é obrigado a aturar isso, mas dizer que isso anula a racionalidade por trás dos argumentos é mentira. Pior, isso é muitas vezes dito com a intenção de silenciar vítimas, privilegiando quem não passou pessoalmente por algo por se conseguir distanciar do problema e automaticamente garantindo a vitória da pessoa com menos "[lugar de fala] / voto na matéria". Que é como quem diz, [Tone policing is another way to protect privilege] (este link é uma comic). 
  • Não dá para ser didático 100% do tempo. Aliás, esse é literalmente o título [deste vídeo], em brasileiro, portanto podem ver. Por várias razões: Devido ao ponto anterior, as pessoas deixam de ter energia emocional e podem até começar a ter problemas físicos devido ao seu estado mental, e não é justo pedir a alguém nesse estado que não o manifeste; Não há tempo para ser sempre didático - se eu quisesse ser didátique com todas as pessoas que não sabem que pessoas não binárias existem e/ou pensam ativamente merda sobre elas, eu sem exagero teria de falar com toda a gente, e como em média eu demoraria mais de 24 horas a fazer com que me entendessem... hum, não é viável. Especialmente com outras coisas que tenho para fazer; 
  • Continuando com a ideia de energia emocional, há uma coisa chamada [emotional labor] que dá para definir como sendo a disposição de alguém para tomar conta das necessidades de outras pessoas, especialmente no sentido de as validar, encorajar, e até agir de acordo com as expectativas delas. É algo bastante praticado em relação às pessoas que se ama - especialmente por parte de mulheres cisgénero, tão associadas à ideia de maternidade e de cuidar dos outros - mas pode tornar-se mentalmente esgotante e levar a relacionamentos tóxicos, românticos ou não, caso seja um comportamento unilateral: Isto é, se a pessoa que recebe todos estes cuidados não estiver disposta a fazer o mesmo por quem tanto a ama, até porque isso resulta na falta de reconhecimento do que está a ser feito por si, e na alimentação do ego da pessoa, impedindo-a de sequer conhecer realmente quem a ama. Isto relaciona-se com o assunto pelo facto de que de-escalation implicar muitas vezes dar ouvidos, validar e entender o que outras pessoas pensam, mesmo quando elas estão a fazer algo percepcionado como injusto ou cruel (eu sei que já disse isto). Então, embora possa ser um primeiro passo para a comunicação e acordo entre todas as pessoas envolvidas, importa lembrar que pode não dar em nada e continuar com esta técnica perante as mesmas pessoas por tempo prolongado pode acabar por esgotar emocionalmente quem a pratica. Só para reforçar ainda mais que esta técnica é imperfeita.
  • Esta técnica é usada, como eu disse, não só em discussões como em situações complicadas. Por muito que se possa vir a tornar pouco saudável (ver ponto anterior) se for usada sem cuidado, pode chegar ao ponto de salvar vidas, já que pode permitir abrandar situações onde há ameaça de violência. E como coisas destas podem acontecer a qualquer pessoa - o título menciona ativistas, mas até o trabalhador de uma loja qualquer pode estar sujeito a algum cliente extremamente zangado e violento - o conteúdo deste post devia ser conhecimento geral. 

Sinais de risco
Basicamente, este ponto fala de sinais que permitem reconhecer quando uma discussão ou situação se está a tornar mais perigosa ou acesa. Quer venha a resultar em violência, intolerância ou simplesmente arruinar o que de outro modo seria uma discussão que contribui para o crescimento das pessoas envolvidas, é importante saber antecipar o conflito. Aqui estão alguns exemplos do que uma pessoa que está prestes a ficar irritada pode fazer:
  • Apertar as mãos em punhos com força ou muitas vezes
  • Cerrar os dentes
  • Uma mudança repentina na postura
  • Uma mudança repentina no tom de voz
  • Uma mudança no tipo de contacto visual
  • Começar a andar pela sala, o famoso "pacing"
  • Adotar uma postura muito direita, com peito para fora e braços e pernas afastadas, como um galo zangado
  • Gritar, insultar, desafiar regras, recusar qualquer tipo de colaboração, destruir coisas, tirar coisas de outras pessoas...

Como proceder
É necessário fazer duas coisas: a pessoa que vai tentar de-escalation deve ficar calma antes de qualquer tentativa de de-escalation, e só depois tentar intervir e interagir com a(s) outra(s) pessoa(s). Grande parte destes pontos é quase tradução [deste artigo].

Para a pessoa que quer intervir se acalmar, deve:
  • Analisar a situação de modo a perceber se não será demasiado inseguro intervir. Se for, há que tentar sair dela e/ou pedir ajuda. Ajuda observar o estado de outras pessoas na sala, o espaço livre, a proximidade entre onde se está e a saída e se há algum obstáculo para a alcançar, e a existência de objetos que podem ser usados para magoar, como cadeiras, mesas, talheres, tesouras, objetos de vidro, coisas facilmente atiradas, e em casos mesmo preocupantes, armas. 
  • Deve proceder apenas se for seguro e/ou não tiver outra solução, e se estiver disposta a correr o risco de aumentar a sua carga emocional, como já mencionei nas notas.
  • Respirar fundo e abrir mão dos seus sentimentos de dor, raiva ou frustração. 
  • Tentar encarar a situação como uma oportunidade para aumentar o entendimento entre as pessoas, pois isso aumenta a confiança e desejo de contribuir para um desfecho positivo. 

Após estar calma, pode seguir esta lista de sugestões que trarão ou não resultados, e é possível que alguns dos items não façam sentido aplicar em dada situação. A ordem é aleatória, e com sorte não será necessário passar por todos os pontos:
  • » Aparentar não ser nem uma ameaça, nem uma vítima
    • Usar um tom de voz monocórdico/monótono/constante, sem o levantar mesmo perante insultos.
    • Não agir na defensiva, nem a nível de argumentos, nem de postura: implorar, cruzar os braços, fazer expressões de discórdia, revirar os olhos, gesticular demasiado, mostrar ansiedade ou medo, encolher os ombros, tentar olhar a pessoa de um ângulo inferior... 
    • Não agir na ofensiva, nem a nível de argumentos, nem de postura: usar insultos, pôr as mãos nas ancas, fazer expressões de discórdia, revirar os olhos, apontar os dedos à outra pessoa, tentar olhar a pessoa de um ângulo superior...
    • O ideal é tentar manter o olhar ao mesmo nível da outra pessoa - encorajá-la a sentar-se pode ser uma boa ideia, mas caso ela fique de pé, estar de pé também - manter os braços esticados junto ao corpo numa posição relaxada, tentar aparentar calma e disposição para comunicar, e manter uma distância física de pelo menos um metro, mas não mais que 4.
  • » Tentar criar uma conexão pessoal
    • Pode ser algo tão simples quanto perguntar o nome dela. Não só parece dar a entender que se tem interesse em quem ela é, como quebra a discussão, para além de que a maioria das pessoas responde positivamente ao uso do seu nome.
  • » Ouvir e validar as preocupações, sentimentos e ideias da outra pessoa
    • Tentar não fazer julgamentos. Se forem feitos, não os pronunciar ou contra-argumentar, a não ser que a ameaça tenha passado. 
    • O ideal é criar empatia. Mesmo que se discorde da solução, métodos ou posicionamento da outra pessoa, deve haver um esforço real para entender porquê que ela se sente/pensa daquela forma. Para além de validar a perspetiva da pessoa, ajuda a resolver o conflito. 
    • Clarificar, parafrasear e fazer questões abertas sobre o que a outra pessoa está a dizer ajuda a assegurar-lhe que está a ser ouvida com atenção e que há uma tentativa de a entender por completo. 
    • Se fizer sentido, pedir à outra pessoa permissão para tirar notas
    • Se ela estiver a falar apenas de problemas, perguntar quais são as suas ideias para os solucionar
    • Ajudar a outra pessoa a expressar os seus sentimentos, em vez de agir sobre eles
  • » Abordar a conversa de uma perspetiva futura
    • Isso ajuda a criar esperança para os problemas que a outra pessoa identifica
    • Também transmite confiança de que se sairá de forma positiva da situação atual, e contribui para parecer uma pessoa pouco ameaçadora
    • Nessa perspetiva futura, ajuda incluir a palavra "nós", pois isso elimina a ideia de inimizade/conflito e evita alienizar a outra pessoa, pois não a trata como alguém de fora
  • » Fazer com que a pessoa diga sim
    • É muito difícil para alguém continuar zangado com uma pessoa com a qual concordam
    • Pode ajudar a dar continuidade à conversa e até chegar a soluções



E acho que era isso para conteúdo. É engraçado, porque isto tudo assenta no tema da diplomacia - entre outros, claro - e isso fez-me lembrar um trailer de um jogo que está quase a sair e eu conheci precisamente ontem. Foi a minha irmã que mo mostrou e, segundo ela, o jogo ficou conhecido precisamente por ser pouco conhecido apesar do potencial. Refiro-me a [Greedfall], e podem ver o trailer aí. Quando fui ao tumblr, apercebi-me de que, por ser uma pessoa branca, tive o privilégio de ver o trailer sem prestar atenção a potenciais problemáticas - afinal, aquilo que me ficou do trailer foi que íamos jogar com uma personagem diplomata, os visuais, que me fazem lembrar Dragon Age Inquisition e  como a população de nativos fazia magia e estava associada a espíritos da natureza. Eu reparei que um dos temas era colonização, sim, mas não registei isso como nada demais, até porque todos os jogos têm algum tipo de guerra. E, de facto, não haveria problema nenhum com o tema se fosse jogado da perspetiva de uma personagem nativa, não de um dos colonos, como é o caso positivo de Assassin's Creed 3. Mas jogando com um colono, as opções más serão necessariamente colonizadoras, e as opções boas para proteger os nativos muito possivelmente vão cair numa narrativa de [white savior], e é difícil prever o quê que serão as tais grey choices mencionadas no trailer e como é que elas poderão salvar essas duas narrativas infelizes. Mas, mesmo assim, eu quero dar oportunidade ao jogo e estou sinceramente à espera que me surpreenda. Estou à espera que deixe claro que defender os colonizadores é a decisão errada a quem as escolhe na esperança de ter as suas ideias racistas e variantes validadas, estou à espera de que a personagem principal não roube a autonomia dos nativos, e estou à espera de opções intermédias realmente inteligentes - se não, qual é o ponto de um jogo sobre diplomacia?

Mas, acima de tudo - em parte por ser bissexual e uma pessoa não-binária - não consigo ver a defesa dos colonos encaixar-se totalmente numa narrativa de White Saviour por uma razão principal: o protagonista tem uma marca na cara que os associa com os colonos, sendo provavelmente algum tipo de "mestiço", e faz magia como eles. A minha esperança é que isso seja explorado, e que o jogo reflita a dificuldade de obter o melhor dos dois mundos a que uma pessoa pertence e impedir que estes se aniquilem, com razões mais ou menos válidas (a dos colonos claramente não tem qualquer validade), um ao outro. Espero que se consiga sentir como tanto os colonos com quem aparentemente o protagonista cresceu, como os nativos, vêm o protagonista como um outcast e parte de um grupo que não é o seu, e que o protagonista tenha a oportunidade de abraçar aspetos da sua herança nativa, sem os roubar ou apropriar. Isso sim, seriam grey choices para mim. Há ainda algumas pequenas razões pelas quais tenho esperança de que as opções boas não sejam particularmente tiradas de uma narrativa white savior: a filha do chefe dos nativos vai ser parte da party com quem se pode jogar, e como o jogo obriga a dar atenção e atender alguns pedidos dos membros da party - ou eles podem mesmo ir embora - ela vai funcionar como representante das necessidades dos nativos, e ainda está suficientemente presente para que esteja entre as pessoas que salvam o seu povo. Ou seja, pelo menos não será possível serem só colonos a salvar os nativos - os nativos também se salvam a si próprios. Ainda não é a mesma coisa que ter a história contada da perspetiva deles, mas still.

Vamos ver, vai tudo depender do desenvolvimento...

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1 comentário:

  1. Oi Any!

    Achei interessante existir toda uma teoria e prática a respeito, mas acho que percebo que faltam muitos limites e empatia nas pessoas - ao menos aqui na minha terra. Muitos ataques e discussões seriam evitados se as pessoas só se dessem contra que as outras são pessoas como elas, que sofrem e se machucam como elas e, bem, não deveríamos desejar o sofrimento alheio nunca, não é mesmo?
    Quanto aos limites, acho que se tod_s respeitassem os limites d_ outr_, já estava de bom tamanho. Mas bom, que esse tipo de postagem possa servir para diminuir essa agressividade e intolerância que nos rodeia! Já estava de bom tamanho se funcionasse. XD

    Beijinhos!

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