{Resenha} Shimanami Tasogare


Ohayou! Como prometido é devido, venho hoje trazer o segundo post desta semana ;) Além disso, ainda que com atraso, já respondi aos comentários dos últimos posts até porque a Hinata não me deixaria em paz se eu não o fizesse haha De novo, devo insistir que quem quiser saber novidades sobre mim - e eu gostava particularmente que ficassem a saber pormenores sobre eu [ter acabado a faculdade] e [ter feito uma operação aos olhos] - devem ler esses links, pelo menos a parte sobre a minha vida pessoal. 

Hoje trago uma resenha de Shimanami Tasogare. É um mangá que retrata de forma realista - isto é, sem drama exagerado nem um cenário idealista onde problemas não existem - as vivências de pessoas lgbt+, incluindo uma grande variedade de identidades. A história passa-se no Japão, e é apresentada da perspetiva de Tasuku, que se ia suicidar após ter sido arrancado do armário na escola, mas não o faz devido a um evento que o leva a encontrar uma comunidade.

Ficha técnica
  • Nome: Shimanami Tasogare / Your Dreams at Dusk
  • Mangaka: Kamatani Yuuki
  • Volumes e capítulos: 23 capítulos, distribuídos por 5 volumes. 
  • Onde ler: [inglês | português]
Contexto
O Clowder é uma organização não-lucrativa de restauração de casas, e a maioria dos seus membros passa o tempo no salão (lounge) de Anonymous, um dos primeiros locais restaurados pelo Clowder. Rapidamente se transformou num espaço seguro para pessoas lgbt+, para o qual Tasuku é atraído quando, estando prestes a suicidar-se após o colégio ter descoberto que ele era gay, vê uma rapariga a atirar-se de uma varanda abaixo. Essa rapariga é a Anonymous, que se oferece para ouvir toda a gente, mas não oferece conselhos. O que oferece é uma oportunidade para as pessoas porem em palavras como se sentem, e tomarem decisões a partir desse ponto. 

Personagens
  • » Kaname Tasuku: Estudante colegial, participa no comittee de saúde. Tem uma crush no Tsubaki e um melhor amigo chamado Tachibana, mas nenhum deles sabe que ele é gay. A família também não sabe. Após terem descoberto fotos no telemóvel dele, é tirado do armário na escola, mas quando acaba por não se suicidar, descobre que a maioria das pessoas nem sequer acredita que ele é gay. Acaba por participar no Clowder, ajudando como "part-time" (não pago xD) a restaurar casas, e conhece mais pessoas lgbt+. Tem uma personalidade calma e prestável, mas defende as pessoas que ama com intensidade. Amigos próximos chama-lhe Tasu-kun. 
  • » Tsubaki Touma: Estudante colegial no mesmo comittee que o Tasuku, faz também parte do clube de voleibol. Após começar a participar nas atividades do Clowder, começa a aperceber-se da crueldade dos seus comentários lgbtfóbicos (e das suas provocações ao Tasuku por saber que gostava dele) e até a questionar a sua identidade. 
  • » Misora Shuuji: Estudante mais novo que os 2 anteriores, usa pronomes masculinos mas está a questionar a sua identidade de género e usa o salão como um espaço seguro para se vertir com roupas consideradas femininas. Vive com a mãe e irmãs. Gosta de provocar as pessoas e tem uma atitude defensiva. Cuida do peixe no salão. 
  • » Dareka-san Anonymous: Proprietária do salão, entre outros locais, é possivelmente uma pessoa não-binária e apercebeu-se com a ajuda do Chaiko que é assexual e arromântica*, e gosta de estar sozinha embora, ao contrário da opinião que algumas personagens formam, as duas coisas não estejam relacionadas. É uma figura misteriosa, que raramente participa nas atividades do clube mas, quando o faz, demonstra habilidades notórias, e quer ser tudo e nada ao mesmo tempo. 
  • » Chaiko: Membro do Clowder, é um idoso fã de Tchaikovsky (de onde deriva o seu nome) e está constantemente a pôr músicas dele, que btw também era gay. O seu parceiro está no hospital, e haverá um arco dedicado à sua relação com o parceiro e ao filho do parceiro, que quer reconciliar com o pai antes de este morrer. É uma personagem mesmo gentil e pacífica. 
  • » Utsumi: Membro do Clowder, é um homem trans que pretica bastante desporto e já fez voleibol em novo, pré-transição. Koyama Shouko foi das amigas que primeiro suportou a transição, embora nem sempre da melhor maneira. Animado e geralmente paciente, até que alguém começa a abusar.
  • » Daichi Haruko: Membro do Clowder, namorada de Saki (com quem vive), após contar aos pais que era lésbica perdeu grande parte do contacto com eles, embora as coisas estejam a melhorar. Entusista e enérgica, suporta toda a gente que consegue.
  • » Saki: Membro do Clowder e namorada da Daichi (com quem vive), trabalha com os pais no bar deles, que não sabem que ela gosta de mulheres. É mais cética e pouco ambiciosa, mas de maneira geral é gentil.

* No mangá ela afirma ser assexual, mas no Japão, "assexual" significa assexual E arromântique. No-sexual é que significa assexual.

Opinião
Antes de tudo, quero começar por apontar como, embora as personagens estejam no Japão, muitas das questões abordadas fazem sentido na sociedade ocidental. Há aspetos culturais como a noção de que suicídio é honroso (se quiserem saber um pouco mais sobre a idealizaçõ do suicídio no Japão, [aqui] está), mas várias são perfeitamente comuns aqui, como o facto de muitas pessoas lgbt+ se conhecerem graças a dating apps, ou questionar ideias que pessoas cis-hétero muitas vezes têm, como a de que pessoas lgbt+ só pensam em sexo ou adoram bares. Tanto é que a trata se passa numa lounge aconchegante, não num bar nem nada disso. 

Uma das coisas que mais gostei foi de como captou um dos lemas da comunidade lgbt+, o "it gets better", de forma realista. Não houve pais que aceitaram os filhos magicamente, não houve nenhuma personagem gay que após um coming out merdoso arranja logo namorado, não houve nenhuma personagem trans com uma narrativa simplificada por propósitos de a concluir depressa... nope, o que houve foram pequenos progressos, mais até na atitude das pessoas que na sua mentalidade. Pouca gente consegue abandonar preconceitos de um dia para o outro. O que é possível é fazer um esforço consciente para os questionar, ou não agir com base neles. 


Exemplos? A Daichi demora anos a recuperar o contacto com os pais, e no começo nem sequer se encontram pessoalmente. [exemplos SPOILER começando aqui] O Tsubaki apercebe-se de que era errado provocar o Tasuku, e fazer comentários homofóbicos sempre que não estava com o Clowder para depois visitar o salão e poder saber mais coisas com as quais fazer comentários maldosos - e quando está a apagar uma mensagem preconceituosa da parede do salão com o Tasuku, admite saber que o seu eu passado fez muita asneira; O pai do Tsubaki, quando finalmente se apercebe que o facto de o filho passar tanto tempo com "os gays" pode significar que ele também é, reage mal em frente de toda a gente do grupo, até ser enfrentado pelo Tasuku, se enxergar e pedir desculpa. Mudou magicamente de opinião? Não. Apenas percebeu que a reação dele era inapropriada, especialmente considerando que ele se estava sempre a gabar de conviver tanto com "aquela gente". Chaiko, pouco antes de o parceiro morrer, tem a oportunidade de o ver partir ao lado do filho do parceiro, com quem não tinha esperanças de alguma vez se cruzar e até tentava manter a distância para não "estar a mais" quando este visitava o pai - mas essa proximidade não se deu de um momento para o outro. A Saki não era muito dada à ideia de casamento por não querer lidar com a reação das pessoas, e embora acabe por casar com a Daichi, tem de enfrentar os pais primeiro. [fim dos spoilers] São muitas demonstrações credíveis de que modo as coisas melhoram, espaçadas entre si, e a passagem do tempo também traz novos membros e o retorno de membros antigos para o Clowder. 


A ideia de comunidade está bem retratada. As personagens suportam-se umas às outras sempre tendo em atenção aquilo que cada uma precisa no momento, sejam dicas, ajudas mais materiais, serem ouvidas ou simplesmente um lugar calmo para descansar. Protegem-se umas às outras, tentam ajudar na jornada de auto-conhecimento e compreendem que nem toda a gente está em estágios iguais, ou avança com a mesma velocidade, e dão espaço para cada pessoa crescer e agir de acordo com os seus desejos e personalidade. Há pessoas que, quando tentam suportar as outras de forma não indesejada - seja defendê-las quando não querem ser defendidas, tentar insistir que certas labels se aplicam a alguém, insinuar que elas deviam  ter gostado ou não de algo ou atitudes desse género - acabam por estragar a amizade ou pelo menos ouvir que não deviam fazer isso. E isso é bom, porque dá voz às vítimas da situação e é uma forma de reforçar a ideia de que consenso (aplicado a todo o tipo de situações), espaço pessoal e limites são conceitos importantes. Outros pormenores que considero muito realistas na maneira como a comunidade é retratada é o facto de a maioria das personagens que fazem parte do Clowder não estar envolvida romanticamente, e apesar de o Tasuku gostar do Tsubaki, isso não implica que tenha de haver um relacionamento, para além de haverem questões mais importantes a ser tratadas. A maioria das personagens também tem idades distintas, e temos desde um pré-adolescente a personagens idosas - mais uma vez, algo raramente retratado em obras que apresentem narrativas lgbt+. 


Um outro aspeto que adorei, que já foi insinuado nos parágrafos anteriores, foi a forma como retrata os erros cometidos por pessoas com boas intenções. As pessoas que odeiam quem é lgbt+ quase nem são mencionadas, sabe-se que existem mas não têm personagens sequer a representá-las. Mas até o protagonista é alguém que faz asneira, não independentemente das boas intenções, mas por causa delas. Há pessoas bem intencionadas desinformadas que só dizem asneira (tipo achar que ser lgbt+ é doença, e "respeitam" precisamente por isso, pela mesma razão que não faria sentido desrespeitar pessoas doentes); há pessoas que querem tanto ajudar alguém a descobrir-se/aceitar-se que fazem pressão indesejada e forçam labels, ou forçam a própria narrativa a aplicar-se às experiências de outras pessoas como se fosse a única válida; há pessoas que de maneira geral não fazem nada de errado, mas deixam claro que não são lgbt+, utilizando termos como "those people" e repetindo várias vezes que são hétero e tal, o que para além de alienizar pessoas lgbt+, cria uma segregação entre "nós e os outros"; há pais que, vendo um casamento lgbt+ na televisão, comentam que "é bom para elas, mas tenho pena dos pais destas pessoas". E para mim, todos esses episódios quase me traziam à beira das lágrimas, pois é algo que considero de longe mais comum - pelo menos, em Portugal - e portanto captou bem a minha experiência. 


Mais do que isso, acho importanto que obras tenham coragem de chamar a atenção de pessoas bem intencionadas, pois a maioria dos autores parece temer fazê-lo ou partilhar da ideia de que boas intenções são suficientes para dissolver todos os problemas, o que desresponsabiliza quem os perpetua e dá uma desculpa para continuarem a cometê-los. Calcar uma pessoa sem querer não impossibilita que quem levou a calcadela se tenha aleijado - porquê que desrespeito haveria de funcionar de modo distinto? Microagressões fazem danos graves, e é provavelmente das coisas que pessoas bem intencionadas menos querem ouvir falar. Afinal, é mais fácil viver sem corrigir os próprios erros enquanto ouvirem falar de pessoas que cometem agressões muito mais graves que as suas, os tais "problemas a sério, pelos quais nos devemos juntar todos a combater em vez de perdermos tempo a implicar com detalhes", minimizando - ainda mais - as falhas dos seus comportamentos. No mangá, muitas personagens são confrontadas com as suas atitudes, e não só isso é realista - lá está, nem beira o drama, nem chega a fazer a sociedade parecer perfeita - como é realista também a reação das personagens: há quem fique a pensar no assunto, quem reaja na defensiva, quem se cale, quem se desculpe, quem tente minimizar o impacto daquilo que fez, e quem mude de atitudes com o tempo. 


O mangá termina de forma bela (tem, sem dúvida, ar de final) mas deixando várias pontas soltas, o que algumas pessoas explicam dizendo que quem o escreveu foi pressionade para terminar depressa - afinal, a revista em que estava a ser publicado ia encerrar. Algumas das pontas soltas deixadas são estas, selecionem o espaço branco em frente para ver spoilers: O Tasuku nunca chegou a contar aos pais que era gay, o arco da descoberta do género de Misora não foi concluído, o Tsubaki não chegou a concluir o seu processo de auto-aceitação e descoberta, não se viu posteriores reações por parte do pai de Tsubaki, a filha da amiga do Utsumi parecia não aderir a estereótipos de género mas ficou no ar se era por ser trans ou simplesmente isso mesmo, o melhor amigo do protagonista, Tachibana, não chega a descobrir nada sobre o Tasuku... São bastantes, embora ofuscadas pelo evento final e pelo epílogo onde ficamos a saber um pouco mais sobre o rumo que as personagens tomaram. 

A arte é lindíssima e o ritmo da narrativa deu-me vontade de ler os restantes mangás de quem o criou. Eu tentei colocar no post imagens que captassem bem a riqueza das páginas, porque isto é uma obra de arte em todos os aspetos - visual e narrativamente. Eu li o mangá todo num dia - isso é dizer muito, especialmente considerando que eu estava sobrecarregade com trabalhos da faculdade haha

Resenhas de outras pessoas: [www www www www]


É um mangá na minha lista de favoritos, sem dúvida. E recomendaria para todas as pessoas que querem compreender melhor a comunidade lgbt+, ou simplesmente vê-la retratada de forma que faça justiça à realidade.

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