União AMTN e discurso ace


Então... Para hoje eu decidi acabar um post que tinha de molho há mais de um ano. É sobre gate-keeping e discriminação de certas identidades lgbt+ pela própria comunidade lgbt+, com foco na exclusão de pessoas assexuais e arromânticas. Também trago curiosidades históricas e lembretes de leis que oprimem pessoas assexuais - e sim, o post será provavelmente tão denso quanto esperam. Ah, com AMTN eu quero dizer a-spec, m-spec, trans e não-binárie.

Já agora, estou inspirade para escrever. Ontem decidi começar a escrever mais uma fic, hoje acordei e escrevi uma mensagem enorme a um amigo da praxe sobre como acho que a praxe podia parar de propagar preconceitos e podia contribuir para a sociedade, e ainda estou a pensar em escrever mais coisas. Já agora, amanhã vou partir numa demanda para conseguir seguidores para o blog ^^ Vamos lá ver como corre. Enfim, cliquem no "mais" se tiverem coragem para ler isto tudo. Eu tinha muitas reclamações a fazer...

Então, basicamente eu quero demonstrar com este post como ainda predominam várias formas de preconceito dentro da comunidade lgbt+, onde certas pessoas decidem reciclar argumentos antigamente usados para discriminar pessoas de dadas identidades contra as novas identidades que vão surgindo ou crescendo. Como vou focar na atual exclusão massiva de pessoas assexuais e arromânticas, vou dividir o post em 3 partes: Na primeira, é só um glossário; Na segunda, vou apresentar os argumentos usados contra a inclusão de pessoas ace/aro na comunidade lgbt, e explicar porquê que esses argumentos são falsos ou não fazem sentido; Na terceira, vou demonstrar os paralelos existentes entre essa retórica e coisas que já foram ditas a pessoas m-spec (bi, pan...), trans, não-binárias...

Vale ainda complementar este post com o meu bebé [olímpiadas da opressão]. Eu explico lá através de gráficos como é que certos grupos podem experimenciar um maior número de opressões e formas de discriminação que outros, contudo, os grupos lgbt+ que lidam com menor número de opressões (não disse menor grau de opressão, a quantidade de opressões diferentes é que é menor) - gays e lésbicas, depois pessoas bi, depois pessoas trans binárias, depois diria que assexuais, pessoas intersexo e pessoas não-binárias estão em posições similares - são os que mais acusam os grupos em piores posições de ser priveligiados e indignos de comunidade.

Não quero que este post seja usado para acusar pessoas de identidades nenhumas de serem as verdadeiras opressoras ou idiotices assim. Há inimigos e aliados de todas as identidades. Eu quero é que as pessoas parem de 1) encarar todas as pessoas lgbt+ como santas 2) parem de achar que gays e lésbicas são os únicos grupos a sofrer opressão, e que homofobia é a única preocupação de pessoas lgbt+ 3) excluir pessoas que não conformam com a cis-heteronormatividade da comunidade lgbt+.

Antes de mais,

créditos:

Acefobia/TERFS/Bifobia têm retóricas similares:

Aces eram parte da comunidade bi, e esta apoiou as comunidades gay e trans:
www www www www www-v1 www-v2

Fontes genérica sobre ambos os tópicos, com algumas das melhores explicações: www www

Glossário importante:
  • Opressão: "A opressão faz com que as pessoas se sintam reprimidas, humilhadas, onde não conseguem fazer o que precisam ou têm vontade, pois estão sendo alvos de opressão, por parte de conhecidos, do governo, de manifestantes." [fonte]. OU seja, é algo estrutural, ao contrário da discriminação que pode ser manifestada por indivíduos, mas não é algo que ocorre em grande escala nem originada pelo governo.
  • Trans: Identificação com um género distinto do designado à nascença *OBS: usado como termo guarda-chuva para todas as identidades de género não-cis, ainda que com a consciência de que algumas pessoas não-binárias (nem homem nem mulher, abreviadas para nb) não se identificam com o termo, pelo que aspetos relacionados especificamente com estas serão tratados em separado.
  • Bissexualidade: atração por 2 ou mais géneros *OBS: no post vou usar bi como sinónimo de m-spec, logo, termo guarda-chuva para todas as identidades que incluem a atração por 2 ou mais géneros - mas compreendo que esse termo não se adequa perfeitamente a toda a gente, por exemplo, que alguns pansexuais não se sintam confortáveis ou representados na comunidade bi (still, o mito do bi = 2 foi desfeito [aqui]). 
  • Assexualidade (ace): ausência de atração sexual *OBS: termo usado no sentido de a-spec, logo, como guarda-chuva para incluir grayssexuais, demis e outras identidades não completamente zed/alossexuais (zed/alo = sente atração sexual).
  • Arromanticismo (aro): ausência de atração romântica, também é um espectro. *OBS: no post, estará algumas vezes incluído no termo a-spec.
  • Gate-keepers: Pessoas que se acham no direito de policiar as identidades das pessoas e de decidir quem é que se pode ou não considerar lgbt+, com base em experiências assumidas sobre pessoas de dadas identidades. 
  • Ace-discourse: Produzido por discoursers/gate-keepers, consiste em falas que desvalidam a experiência de assexuais (e frequentemente também de arromânticos) e que visam excluí-los da comunidade lgbt+, muitas vezes assentes na ideia de que não sofrem opressão. 
  • TERF ou TWERF: Tipo de feminista radical (o feminismo tem várias vertentes: radical, liberal, interseccional... [ver mais]  - eu sou interseccional), também apelidada de "rad" e focada na exclusão de pessoas trans (binárias ou não), na redução do seu género ao género atribuído à nascença, e dizendo que a identidade das pessoas ou é uma tentativa de abusar mulheres ou uma conclusão confusa tirada por acreditar em estereótipos de género.
  • Queer: Uma comunidade que inclui, tal como a lgbt+, pessoas que não são exatamente heterossexuais heterorromânticas cisgénero perisexo (não intersexo), mas que difere desta na sua atitude política. A comunidade lgbt+ visa a assimilação, ou seja, integrar-se na sociedade, enquanto que a queer rejeita todos os padrões sociais e afirma que é a sociedade que se deve adaptar a nós, não o contrário. "Queer" tem uma história polémica e pode ser uma ofensa para muita gente, invocando episódios até traumáticos, pelo que só deve ser aplicada a quem explicitamente se identifica com essa label/comunidade. Mas sinceramente, não é como se fosse a única label que já fui usada para insultar e acabou por ser reclamada mais tarde...
  • Cishet e Bihet: Significam, tecnicamente, cis-hétero e bi-hétero, mas são termos usados no sentido ofensivo e aplicados muitas vezes a quem é lgbt+, numa tentativa de desvalidar a sua identidade. Respetivamente, a pessoas não-binárias que alguém decidiu considerar" basicamente cis" ou a pessoas bi que nunca namoraram com alguém do mesmo género (se houverem pessoas não-binárias envolvidas, às vezes são reduzidas ao género que lhes foi atribuído à nascença para poder *cof* aplicar *cof* o argumento) como sendo "basicamente hétero". 
  • Tokenizar, usar como "token" - inglês Tokenism: Apenas lembrar de incluir uma minoria quando convém passar a impressão de que se respeita essa minoria - Ex1: "Eu tenho amigos gays!" por parte de alguém que foi acusado de ser homofóbico; Ex2: empresas que recrutam um negro para provar que não são racistas nem têm "nada contra". Querer ficar bem na fotografia à custa de outras pessoas, no fundo. 

Discurso anti-ace e anti-aro
A retórica tão usada é basicamente esta:
  • 1) Assexuais que são "cis-hétero" não têm qualquer lugar nesta comunidade pois não sofrem preconceito por serem ace. Fazem parte do grupo opressor e mantê-los longe é uma medida de segurança para verdadeiros lgbt+.
  • 2) Aces são lidos como hétero e não sofrem, pelo menos, opressão estrutural, então estão a esgotar recursos que podiam ser utilizados por quem precisa mais deles.
  • 3) A assexualidade é uma identidade recente e nunca contribuiu para a luta pelos direitos lgbt+, logo, não merecem um lugar. 

1. Preconceito dirigido contra assexuais

Discoursers começam frequentemente assim: Pessoas cis/hétero sofrem preconceito? Não, logo, aces ou aros cishet não o sofrem. Só sofrem preconceito se estiverem num relacionamento com alguém do próprio género - sofrendo homofobia - ou se forem pessoas trans binárias - sofrendo transfobia. O que está implícito nessa lógica é que não existe preconceito especificamente dirigido contra assexuais/arromânticos, e que pessoas ace/aro cisgénero heterorromânticos são "cishet", o que é estúpido. Logo, isso coloca-os numa posição de privilégio - o privilégio detido por pessoas cis-hétero - e aceitá-los como lgbt+ é convidar discriminação a invadir um safe-space.

Aces/aros são válidos e sofrem preconceito por conta disso

A assexualidade é a sua própria orientação, assim como a arromanticidade. "Hétero" significa heterossexual heterorromântico, então uma pessoa não é hétero sem ser ambas essas coisas, sendo impossível que quaisqueres aces e aros sejam héteros. Logo, são uma minoria sexual/romântica, e como tal pertencem à comunidade.

Mas algumas pessoas dizem que eles são "praticamente héteros" ou vistos como tal, não sofrendo preconceito - isso não é verdade, como demonstro já a seguir - então o único preconceito que poderão sofrer será se não forem cis ou sentirem atração pelo próprio género (Same Gender Attraction» SGA), por essa lógica assexuais não heterorromânticos ou não-cisgénero ou arromânticos não-heterossexuais ou não-cisgénero podem ter lugar na comunidade lgbt+ enquanto abafarem a parte ace/aro da sua identidade, ou enquanto não disserem que sofrem discriminação por causa dela. Só podem ser considerados lgbt+ por sofrer com homofobia/transfobia.

Claro, se algum ace/aro se afirma e identifica como hétero, pode ser chamado de tal, mas a partir do momento em que não sente algum tipo de atração, será visto como "um dos outros" por verdadeiros heterossexuais e torna-se um alvo, não detendo o privilégio de quem é hétero de facto. O preconceito a que estão sujeitos, simplesmente por serem ace/aro, é mais do que comparável ao que qualquer outra pessoa lgbt+ não-ace sofre e deve bastar para poderem fazer parte da comunidade lgbt+, aonctrariamente ao que gate-keepers afirmam. Alguns exemplos de discriminação contra aces/aros:
  • São comparados a animais, "amoebas" (esse nome deu até origem ao fórum da AVEN), ou a seres vivos assexuados
  • São vistos como "gays/lésbicas" no armário pois, não estando interessados em sexo/romance, não se interessam por pessoas do "género oposto", fazendo com que a sociedade revele a sua lhes dirigir homofobia apesar de não sentirem SGA
  • A falta de representatividade nos meios de comunicação é enorme - para não dizer maior do que com qualquer outra identidade lgbt+. Como é que se mostra que alguém não sente algum tipo de atração? A não ser que alguma personagem diga explicitamente que é ace e/ou aro, não há como pessoas lgbt+ se verem onde quer que seja. E em alguns dos poucos casos em que a assexualidade é explícita, é tratada como não natural [exemplo].
  • É esperado que para pessoas viverem juntas haja envolvimento romântico ou sexual entre elas, e quem não cumpre essas expectativas atura boquinhas ou tem o seu relacionamento não sexual/romântico questionado. 
  • Ouvem que é desumano "não amar" ou "não sentir desejo", são comparados a robôs, etc...
  • São tratados como se fossem inocentes (assexuais) ou como se fossem pervertidos que só querem fazer sexo com toda a gente sem se comprometer com ninguém (arromânticos)
  • A sua orientação não é aceite como uma verdadeira sexualidade/romanticidade, pois a sociedade considera que simplesmente ainda não encontraram a "pessoa certa". 
  • A discriminação com que lidam e a pressão para ter uma vida romântica "normal" leva-os a ter pouca confiança em si próprios: "25.88% of heterosexuals, 26.54% bisexuals (called ‘ambisexuals’), 29.88% of homosexuals, and 33.57% of asexuals were reported to have problems with self-esteem." [fonte]
  • Quem mais exemplos? [peguem lá o vosso drama]

Qualquer pessoa pode discriminar e é contraditório convidar cis-het mas não aces/aros

Quanto a fazerem parte do "lado opressor", mesmo pessoas que são verdadeiramente cis-hétero perisexo são frequentemente integrados na comunidade lgbt+, pois o A que deveria representar assexuais e arromânticos em LGBTQIAP+ tende a ser usado para "aliados", ironicamente sendo esse um convite precisamente feito por afóbicos que dizem não querer cishets na comunidade - digo irónico porque, dizendo isso, estão a excluir assexuais e/ou arromânticos (que, como já disse, NÃO são cishet) e a incluir quem afirmam querer excluir, demonstrando os interesses hipócritas por trás dessas ações. A pessoa não quer afastar quem é cis-hétero, quer é afastar assexuais, normalmente sob a desculpa de que eles viriam para a comunidade dizer e fazer coisas que deixariam "os verdadeiros lgbt+" inseguros ou alvos de preconceito. Como cereja no topo do bolo, a ironia ainda pode ficar maior, porque costumam ser os assexuais a sentirem-se atacados em espaços lgbt+ e porque pessoas cis-hétero perisexo (logo, não aces e não-aros) estão igualmente propensas a dizer e fazer coisas preconceituosas.

Não só isso, por muito que eu concorde que espaços seguros podem ser necessários, ser de um identidade não é garantia de deter/não deter preconceito:
  • Exemplos entre identidades: Nem todos os héteros-cis são preconceituosos ou mente fechada; Pessoas lgbt+ podem ser preconceituosas perante sub-identidades da comunidade (ex: gays transfóbicos); Racismo, capacitismo, gordofobia... podem ser encontrados tanto entre pessoas lgbt+ como não; Minorias étno-raciais podem ser lgbtfóbicas;
  • Exemplos dentro da mesma identidade: Há mulheres anti-aborto, anti-trans, racistas, MACHISTAS, e que desvalidam a experiência, escolhas ou direitos de outras mulheres; Há lésbicas que excluem lésbicas que já namoraram com homens no passado (mesmo quando foi por estarem no armário ou terem preconceito interiorizado) - gabando-se de ser gold-star lesbians por nunca "terem estado com um pénis" - e ainda conseguem desvalidar lésbicas trans; Há pessoas com deficiências ou doenças que concordam com a sua inferiorização com que são tratadas;...
Safe spaces não são magicamente criados através da separação, embora essa seja uma noção partilhada por quem prefere o modelo exclusionista ao modelo inclusionista: O segundo consiste em ter uma comunidade com portas abertas a quem não se identifica (inteiramente ou a tempo inteiro) com algo socialmente aceite/padrão, e ainda permite que se oiça e atenda às necessidades particulares resultantes de várias interseccionalidades. O primeiro consiste em acreditar que para se ser queer, lgbt+ ou pertencer a uma determinada comunidade se deve atender a critérios tão específicos quando possíveis, pelo que se procede a gatekeeping (avaliar a pessoa). O problema com o primeiro modelo? Não só presume que mesma identidade = ausência de preconceito interiorizado (como explicado acima), como tende a assumir a identidade das pessoas - muita gente é chamada de cishet porque não "parece" ser lgbt+, como bissexuais (ou outras pessoas m-spec e a-spec) com parceiros de um género "aparentemente" diferente, sendo a invalidação ainda pior se na verdade as pessoas envolvidas na relação forem reduzidas ao género atribuído à nascença. 

2. Opressão contra assexuais é real e justifica recursos

Mesmo que alguns aces/aros possam ser lidos como hétero, isso invisibiliza a identidade deles e desvalida as suas experiências, e todas as pessoas lgbt+ sabem que a isso se chama estar no armário e que é algo muito incómodo - fora que estar no armário não é sinónimo de fugir de todos os tipos de preconceito, pois há preconceito passivo e indireto. Ouvir um comentário preconceituoso sobre quem somos, mesmo que não seja especificamente direcionado a nós, dói igualmente e ainda nos manda mais para fundo do armário, com medo. Ainda, se eles não quiserem ser de tal forma desvalidados, têm de sair do armário, e aí? Aí os héteros sabem que "não são como eles". O preconceito a que estão sujeitos é mais do que comparável ao que qualquer outra pessoa lgbt+ não-ace sofre:
  • Há países onde existem leis de consumação de casamento que obrigam a que uma pessoa tenha relacionamentos sexuais para poder ser considerada casada com a outra
  • A assexualidade era até há pouco tempo a única sexualidade considerada uma patologia, segundo o manual dos médicos DSM. Felizmente em 2014 [isso mudou]. Porquê que não faz sentido considerar uma patologia? Já vários [estudos psicológicos] explicam as razões. 
  • O papa-nicolau é muitas vezes imposto, mesmo a quem nunca teve relações, e às vezes nem se acredita nas pessoas que dizem nunca ter tido relações, a partir de certa idade. Isso faz com que pessoas afab (assigned female at birth) tenham de se sujeitar a um exame médico que já é desconfortável mesmo para quem tem relações sexuais, e quase as faz sentir-se violadas. 
  • Podem ser vítimas de [estupro corretivo], que é quando alguém, para violar a pessoa, se desculpa dizendo que é para a curar de uma orientação considerada anormal. No caso da assexualidade, é para "acordar a pessoa para a vida sexual". Nota: Muita gente diz que o termo foi criado para descrever um ataque a lésbicas Sul-Africanas e só deve ser usado por lésbicas, mas o facto é que muita gente comete o mesmo ato contra bissexuais, pessoas trans e assexuais, e que a comunidade lésbica africana não está fragmentada para distinguir quem é assexual e alossexual, dizendo portanto que o uso do conceito está livre. 
  • Há leis em certos países que permitem asilo a quem sofre de homofobia. Contudo, se essas leis já fecham os olhos aos problemas enfrentados por pessoas bi [fonte] - seja porque o seu casamento as "impede de ser gays" (ah , jura?), porque não parecem gays o suficiente ou razões assim ridículas para argumentar que não devem realmente sofrer com homofobia - essas leis não protegem nem da bifobia, nem da acefobia, nem da transfobia. Qualquer pessoa que sofra especificamente com uma dessas formas de preconceito não tem como obter ajuda. 
Portanto, eles sofrem opressão estrutural, de micro a macroagressões. Se o sofrem, precisam de recursos. Se os recursos são necessários, o facto de organizações investirem tempo a desenvolvê-los nunca será um desperdício - não que hajam muitas organizações que se dignem a ajudar aces, mas as coisas estão a melhorar... A coisa é ainda pior para quem é ace E sente atração (não necessariamente exclusiva) pelo próprio género, ou ace E trans/nb, ou ambos (e o mesmo vale para aros) - pois terão de lidar com mais do que uma forma de discriminação, e com as suas intersecções. Mas sentir atração pelo próprio género e/ou não ser cis não são de maneira nenhuma as únicas fontes do preconceito com que assexuais podem sofrer, então clamar isso desvalida as dificuldades de quem é simplesmente ace/aro e ignora a complexa relação entre as várias identidades de aces/aros que não são "cishet". Quem clama que aces não sofrem preconceito por essa identidade específica está muito iludido, ou a está a ser egoísta e até a despreparar aces para reações negativas que poderão ter de enfrentar ao sair do armário.

Importa mencionar que as formas de preconceito listadas acima não são cometidas por apenas pessoas cis-hétero, como por outras pessoas lgbt+, frequentemente gays e lésbicas (que são quem recebe mais fundos [fonte][o Tracking Report mostra que os fundos são consistentemente baixos para organizações bi] mas tristemente não tenciona dispensar nem um bocadinho para ajudar aces), e preconceito vindo da comunidade que supostamente deveria dar as boas-vindas e luta por "amor livre de expectativas-sociais" dói ainda mais. É como ser rejeitado pelas pessoas em quem mais alguém confia. 

3. Assexuais contribuiram para a comunidade lgbt+ sob a identidade bissexual

Quem acha que assexuais nunca contribuíram para a comunidade lgbt+ e queer desconhece a história dessas comunidades, e mais ainda, a história da comunidade bi. As pessoas não têm a obrigação de saber episódios históricos, é claro, mas se não sabem, não podem fazer afirmações sob esta.

É um facto que a assexualidade e o arromanticismo são duas orientações que só passaram a ser reconhecidas, ganhando uma comunidade própria, após 2000. Há vários artigos a explicar a história da comunidade, mas há um [esquema cronológico] que da minha perspetiva faz um resumo bom para quem não sabe muito do assunto e quer reter apenas uma ideia genérica, e esse link em particular inclui na história o aparecimento de símbolos assexuais e relaciona o fortalecimento da comunidade com o fórum AVEN. O primeiro estudo foi feito em 1983 [fonte], provando que os assexuais estavam mais susceptíveis a ter depressões e ser afetados no que toca a saúde mental,

Antes disso, contudo, pessoas ace e aro já existiam - apenas não tinham um nome e comunidade própria, havendo quanto muito alguns indivíduos que se identificavam como tal. Adquirirem uma comunidade foi ótimo para se tornarem mais visíveis a nível mainstream e para que as necessidades específicas delas fossem abordadas e atendidas, assim como para facilitar a compreensão dos seus membros. Isso não muda o facto de que, antes, faziam parte da comunidade bissexual.

Ouviram bem: os assexuais faziam parte da comunidade bi, porque não são "nem gays nem héteros", e a comunidade bi mantinha (pelo menos em alguns lugares) - de certa forma, ainda mantém - as portas abertas a qualquer pessoa que não se sinta integrada num desses extremos. A pessoa gosta de mais de um género? Bem-vinda. A pessoa está a questionar a sua sexualidade? Oferecemos apoio. Género não lhe faz diferença não porque sente atração por todos, mas porque não sente atração por nenhum? Para muita gente bi género não faz diferença. Sempre teve relações com pessoas de um género só mas uma parte de si admite que se sente um pouco atraída por outro(s) género(s)? Bi. Está curiosa sobre a possibilidade de poder gostar de mais de um género? O termo bi-curioso está aí para isso. Sente atração por um só género mas a sua própria identidade de género muda, fazendo com que às vezes esteja em relações de "género-igual" e "género-diferente"? Bissexual. É agénero e portanto é impossível que esteja num relacionamento "mesmo género" ou "género diferente"? Bi pode ajudar a validar a identidade (Estas duas últimas devem ser parte da razão pela qual a comunidade bi e trans/nb se sobrepõe tanto). Sente atração sexual e romântica por géneros distintos? A média provavelmente dá bi. A atração parece mudar com o tempo? A bissexualidade é bastante fluída. Sente que o género não faz diferença, seja para sentir atração ou para não sentir? Pode perfeitamente ser bi.

Ao contrário do que, [já desde 1990], a comunidade lésbica dizia sobre a comunidade bi - que bissexuais eram quem sentia atração/tinha relações com pessoas de "ambos os sexos" - a própria comunidade sempre se uniu não pela atração ou comportamento previamente manifestado, mas pelo POTENCIAL de géneros não serem um fator determinativo na atração que se sente. E decididamente, para assexuais, o género não faz diferença pois nenhum poderá suscitar magicamente atração sexual (obviamente, se for um assexual não-arromântico, o género interfere na atração romântica, mas isso é um espectro distinto) - e vice-versa para arromânticos.  Há até registo de uma entrevista a Nona Hendryx que ao ser descrita com a palavra "bissexual", não rejeitou a palavra mas acrescentou que pensava em si como assexual [página do livro onde isso é mencionado]. Não só aces e aros e aroaces se podiam identificar como "bi", como mesmo "bissexuais", pois uma espécie de grito de guerra antigo era que a orientação "não se tratava de sexo!" [prova de que isso era dito]. Sexo não é tudo num relacionamento, e sinceramente, mesmo que agora hajam nomes específicos para todo o tipo de atrações, eu (e de certeza muita gente) decididamente convidaria com muito gosto pessoas que se sintam confortáveis na minha comunidade, mesmo que também tenham identificações para além de bi.

Então, quem afirma que assexuais nunca contribuíram para ajudar a comunidade ignora o facto de que contribuíram, sim, mas sob o nome de bissexuais. E por muito que certos indivíduos GGLG adorem negar isso, ativistas bissexuais fizeram grandes coisas pela "comunidade gay". Com base em postagens [como esta], aqui estão alguns desses feitos:
  • A criação da marcha do orgulho lgbt+, criada por Brenda Howard um ano após os Stonewall Riots. Ela até ganhou o título de [mother of pride].
  • Muitos abdicaram da sua identidade, dizendo-se gay/lésbicas, para fazer a comunidade gay parecer mais numerosa [fonte][uma das poucas fotos em que decidiram fazer-se notar em marchas pelos "direitos gays"] - sendo essa parte da razão para tanta gente achar que bissexuais não existem: "So why are so many gays so certain bisexual people were absent in the fight against homophobia? Because for one thing, often part of our contribution was to downplay our bisexual identity to keep the issue of homophobia at the forefront." [fonte]
  • Ajudaram a desenvolver estudos sobre SIDA, assim como medidas de precaução e desconstrução de preconceitos em torno do assunto. Em 1981, quando a SIDA ainda mal era reconhecida, "Cynthia Slater, presented safer-sex education workshops in bathhouses and BDSM clubs in San Francisco", entre outras coisas. 
  • Distribuiram panfletos com informação, eram membros importantes de "espaços gays", faziam leis a proteger direitos "homossexuais", etc... O link no topo destes tópicos diz tanta coisa que não vale a pena eu repetir tudo aqui. 

Paralelos com o discurso contra pessoas m-spec e trans
A secção anterior do post já deve ter dado a entender que a comunidade bi e ace têm história juntas, e e de certa forma partilham-na com a trans - não dei muitos detalhes sobre isso, apenas mencionei que há uma certa sobreposição entre as comunidades bi e trans, mas o facto é que há [estudos] que comprovam essa sobreposição (como eu estou a usar bi como sinónimo de m-spec deste post, é até se pode somar os 25% da "bisexualidade" aos 23% queer, oque dá uma sobreposição imensa), e vários exemplos em que as várias comunidades foram aliadas - como [neste livro - no tópico Closing Decade to New Century History Snapshot].

A verdade é que essas 3 comunidades bi-ace-trans sempre foram excluídas, de forma direta ou indireta, em simultâneo ou em contextos distintos, da comunidade lgbt+, onde ainda há gente que sonha com o dia em que se torne GGLG já que a homossexualidade é a atração mais fácil de aceitar (é basicamente o mesmo que a heterossexualidade, só mudando o género) e assimilar - logo, facilitando a aceitação por parte da maioria social. Muita gente diz que os argumentos utilizados contra os assexuais são bifobia reciclada e que, para usufruir de um privilégio mínimo, homossexuais (mas não só, claro!) seguem o comportamento de torcer o nariz e dizer "Oh não, nós não somos como eles! Se nos deixarem entrar no lado privilegiado, ajudamo-vos a oprimir esse grupo!". Para que conste, isto não é uma crítica à comunidade homossexual como um todo, apenas a alguns dos seus indivíduos que, já tendo conquistado alguns direitos por arrasto da comunidade, estão a usar o privilégio recém-adquirido para manter outros grupos fora da plataforma, tanto numa tentativa de manter o privilégio e a nova posição hierárquica, como por consequência da febre ter subido à cabeça. São pessoas pouco conscientes e que estão de certa forma representadas pela imagem ao lado: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se opressor" - Paulo Freire. Still, há idiotas em todo o lado e se lerem o link que deixei, notarão que isso acontece em várias comunidades, então não quero ver ninguém por aí a pensar que homossexuais são todos opressores, ok?

Aqui estão amostras do preconceito (por TERFS e outros tipos de gatekeepers) contra pessoal bi e trans !!!!ISTO É TUDO UM MONTE DE NONSENSE FEITO/DITO POR ALGUMAS PESSOAS!!!!:
  • O acrónimo "lgbt(+)" é usado mas só se fala de questões gays/lésbicas
  • Bissexuais também só são considerados lgbt+ quando estão num relacionamento do mesmo-género
  • Pessoas trans sofreram várias tentativas de ser excluídas porque "género não tem nada a ver com sexualidade"
  • Mulheres trans ouvem que têm privilégio porque foram educadas como homens
  • O termo "bihet" funciona como o "cishet", para bis que aparentam estar num relacionamento "género-oposto", especialmente mulheres bi que nunca parecem ser "queer suficiente".
  • Pessoas não-binárias ouvem muitas vezes que não sofrem preconceito por serem enby, apenas por serem confundidas com pessoas trans, como se não sofressem ataques específicos ou como se a existência delas fosse sequer reconhecida legalmente
  • Pessoas bi ouvem que bifobia não existe nem é estrutural, e que o que sofrem é homofobia por serem confundidas com gays (e por isso só a sofrem num relacionamento mesmo-género)
  • Pessoas trans que são obrigadas a fazer cis-playing ouvem que têm privilégio-cis
  • Pessoas bi ouvem que têm privilégio-hétero, principalmente se estiverem em relacionamentos com alguém lido como sendo do género oposto
  • O preconceito indireto é tratado como se não existisse. O mesmo para a invisibilização, ou seja, armários forçados
  • Pessoas bi são chamadas de homofóbicas porque "podem escolher" serem homossexuais mas ficam "indecisas" (what?)
  • Pessoas não-binárias não são consideradas verdadeiramente trans (duh, algumas nem se identificam como trans, mas em quê que isso anula a experiência de pessoas binárias???)
  • Identidades m-spec são redefinidas à força por quem não é da comunidade mas recebe mais atenção, que dizem que a) a bissexualidade é transfóbica/binarista/exorssexista porque bi = 2 e isso exclui pessoa não-binárias b) todas as pessoas m-spec sentem atração pelo próprio género (sga discoursers).
  • Bissexuais são apagados da história e pessoas notórias que foram bi e os seus feitos são ora referidas como aliadas ora como gays.
  • "A comunidade uniu-se para combater homofobia e transfobia" - essa frase literalmente desmerece a existência da bifobia, e ainda por cima é usada por pessoas que normalmente ignoram direitos trans, só se lembrando deles quando lhes convém parecerem pessoas inclusivas. Tokenizing aplica-se bem aqui...
Esses argumentos (entre outros) tornam-se muitas vezes hilariante porque são reciclados e readaptados entre os vários discursos, só trocando os termos - a invisibilidade bi e ace são praticamente idênticas, a maneira como pessoas bi e enby são vistas como indecisas e preconceituosas por não pertencerem a um "lado", pessoas trans e aces são consideradas intrusas porque género/gostar de sexo não tem nada a ver com sexualidade... e todos esses grupos são acusados de um privilégio que não possuem (sim, essas pessoas têm alguns privilégios de certeza, toda a gente tem um ou outro, mas o que acontece é que é dito que essas pessoas têm um tipo conreto de privilégio que não se aplica). Mais hilário ainda é quando pessoas cis GGLG dizem que assexuais devem ser excluídos para "proteger gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans", caso essas pessoas em particular nunca se lembrem no dia a dia de pessoas m-spec e transgénero, só se lembrando para ficar bem na fotografia - contudo, acusando os próprios assexuais de estarem a usar a nossa opressão para apoiar o lado deles, tokenizando-nos [fonte] - quando na verdade o apoio ser voluntário. O que essas pessoas ignoram é que muitas vezes quem estão a acusar de ser assexuais - ou, como elas chamam, cishet - nem sequer são assexuais e sim as próprias pessoas bi e trans, que se aliaram à comunidade a-spec [fonte].

Se o discurso não especificar de qual grupo se trata, a semelhança na retórica é tanta que é possível TERFS e ace discoursers acharem que têm potenciais aliados à sua frente - há até um episódio no tumblr em que isso de facto aconteceu, embora agora o link esteja quebrado e eu não tenha tirado print...: uma pessoa fez um post a dizer que gente cis-hétero devia ser excluída das comunidades lgbt+ porque estariam lá para oprimir, e nas tags escreveu "ace-discourse", mas com os reblogues as tags perderam-se e uma TERF chegou a reblogar esse post com o comentário "exato, não deixem homens de saia ameaçar os nossos espaços!". Os alvos não eram os mesmos, e contudo o argumento era o mesmo, só havendo necessidade de trocar os termos se estes estivessem presentes na frase.

Conclusão? Que caos...

Mas agora a sério. A conclusão é que há muita gente que parece achar que validar a experiência e problemas de outras pessoas é um atentado aos seus, que adora generalizar medos, que acha que a história que vivenciou é a história do mundo, que acha que pode fazer generalizações do tipo "estas pessoas nunca ajudaram e portanto são parte do problema", que acha que tem o direito de questionar, negar ou distorcer as vivências de alguém, se é que se digna a ouvi-las. Isto não se aplica só a questões lgbt+, claro, essa é apenas o assunto do qual cada vez conheço mais nuances. E se há coisa que não suporto, é invalidação da contribuição ou da experiência de alguém.

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