Então... hoje não haverá recomendações do dia. Porque eu não tenho tempo para fazer dois posts, mas quero desabafar sobre este assunto. Mesmo ainda não tendo visto a sétima temporada de Voltron, já sei spoilers de praticamente tudo e, apesar de estar certa de que a temporada tem vários pontos fortes e que vou gostar dela como um todo, isso é completamente irrelevante para analisar a tão prometida - mas não inteiramente entregue - representatividade lgbt+. O post contém spoilers e sugiro que parem de ler a partir daqui se não viram até à sétima temporada, incluída. O post não irá dirigir qualquer forma de ódio à equipa por trás de um "anime" tão bom nem irá entrar em guerras de ships, mas sim considerar o enredo, o marketing, informações dadas em entrevistas e a forma como tudo isso contribuiu para dois conceitos problemáticos dos quais a comunidade lgbt+ já está cansada de explicar porquê que magoam: queerbaiting, e a trope Bury Your Gays. Também pretendo esclarecer dúvidas que tanta gente parece ter em relação à má representatividade de que Voltron está a ser acusado - por exemplo, confundindo as acusações de queerbaiting com as acusações da trope que mencionei.
Fanart de Lance a descobrir que os outros paladinos são lgbt+ [créditos - é uma comic] |
Considerações relevantes nesta análise
Vou considerar:
Shiro com bandeira lgbt+ nas costas [créditos] |
- - Que o Shiro é uma personagem maravilhosa para ser lgbt+, e o facto de o ser em NADA se relaciona com o queerbaiting. O facto de não aderir a grandes estereótipos, ter um papel relevante e de a sua experiência intersectar com outras caraterísticas típicas de minorias sociais - sendo asiático, tendo perdido um braço, vivido com uma doença crónica e tendo desenvolvido PTSD com a guerra - é algo que raramente acontece, e verdadeiramente inspirador.
- - As frases pronunciadas pela equipa de desenvolvimento em relação ao Shiro. Isso inclui ter sido dito em entrevistas que veriámos mais do Adam [fonte], que teriam casado se o Shiro não tivesse aceite a missão do Garrison [fonte], mas que terminaram porque o Adam não aguentava mais a possibilidade de perder o Shiro [o próprio anime mostra essa parte, mas também é dito no link anterior].
- - As frases pronunciadas pela equipa de desenvolvimento em relação a outros temas lgbt+, entre as quais que seria um deserviço tanto ao Lance como à Allura se eles formassem um casal porque o Lance não merecia ser a segunda opção [fonte], entrevistas a debater ships como Klance/Laith [exemplo], comentários da Netflix a dizer que shipa Klance e que Voltron é basicamente Queer Eye com robôs gigantes [fonte], entre outras.
- - Material oficial como os cartazes usados no marketing da sétima temporada [mostro conforme for relevante para o meu argumento], ou a arte oficial onde as personagens estão a segurar cartazes a dizer "género", "raça" e "lgbt" - palavras essas que, com exceção para já do Lance, estão associadas a arcos das personagens [imagem].
- - Que a história aborda temas como os impactos da guerra e não pretende focar em romance, a não ser que este tenha relevância para mover o enredo
- - Que ainda falta uma temporada e até lá várias coisas podem mudar
Não vou considerar:
- - Guerras de ships, ainda para mais porque eu sou multishipper
- - Que o foco da trama é o romance e que a equipa de desenvolvimento é obrigada a apresentar um romance melado no meio à guerra, porque obviamente o propósito de Voltron não é apresentar isso
- - Que na sétima temporada já ficou claro que casais irão ser formados, porque ainda não está tudo acabado
- - Que a equipa de desenvolvimento se opõe a representatividade lgbt+ ou qualquer outro tipo de representatividade, pois para além de não haver bases que fundamentem isso, membros da equipa - como Bex - são lgbt+, e há teorias de que a equipa está a ter resistência por parte da Dreamworks para apresentar mais personagens lgbt+ [fonte]
Fanart de Keith como gay, Lance como bi, Pidge como trans e Allura como lésbica, celebrando Pride [créditos] |
O quê que desilude na representatividade
Aplicação injusta e desnecessária da trope Bury Your Gays
Fanart Shadam/Adashi [créditos] |
Destaquei essa passagem porque seria a minha resposta ao que pessoas que fazem parte da equipa de desenvolvimento - incluindo a voice-actor da Pidge, Bex - [afirmaram]: que a história é sobre guerra e portanto há mortes. De facto, o Adam morreu em batalha, antes mesmo de chegar a saber que o Shiro estava vivo - mas porquê que o contexto em que morreu ainda torna a trope problemática?
- - Mesmo entre personagens secundárias, poucas morreram. E no meio de tantas famílias que Voltron já introduziu, ainda não morreu nenhum casal lido como hétero. Se há mortes durante a guerra, e se queriam causar impacto com alguma morte, porque não a) matar mais personagens b) escolher matar alguém por quem sentiamos mais afeição e já conhecíamos c) escolher uma morte cruel, como matar o James que só tem a idade dos paladinos?
- - Mesmo que tivessem morrido casais lidos como hétero, isso não anulava o facto de que o Shiro e o Adam eram o único casal - aliás, ex-casal, mas mesmo isso já bastava - lgbt+ introduzido na história. Matar uma das personagens do casal faria com que não sobrevivesse nenhum casal lgbt+ para contar a história, sendo esse o problema.
- - Muita gente diz ainda que a morte de Adam não teve contribuição nenhuma para o enredo, sendo desnecessária. Como ainda não vi a temporada nova, não posso comentar isso, mas fica aqui registada a possibilidade - embora [outras interpretações] também sejam válidas.
Diga-se ainda de passagem que a origem da trope até foi uma coisa "positiva" (mais concretamente, a única maneira em que era permitido ter explicitamente personagens lgbt+ antigamente). Nunca foi criada para gente hétero se apoderar dela e a usar sem necessidade de formas que magoam pessoas lgbt+. Aqui podem ver [mais sobre a história] mas, para além disso, recomendo esse link pela análise maravilhosa que faz ao sofrimento do Shiro e à ironia da morte do Adam.
Queerbaiting
Fanart Sheith [créditos] |
Também é problemático a frequência com que contextos que podiam ser aproveitados para oferecer representatividade lgbt+/queer são inteiramente desconsiderados, fazendo com que amizades ou quebras de estereótipos de género (outrora pouco representadas) sejam sempre desenvolvidas em vez disso, aumentando ainda mais a frustração de quem quase nunca se vê representado em condições e ainda deu audiência a uma obra que às vezes até troça da sua cara - dado que muitas vezes a equipa de desenvolvimento e marketing que atraiu público lgbt+ acusa fãs de se terem iludido a si própries ou de estarem a desmerecer o esforço colocado no desenvolvimento de outros elementos da história. Ou seja, para além de não terem visto a representatividade lgbt+ que desejavam, fãs ainda têm de lidar com o facto de terem dado audiência a quem os usou.
No caso de Voltron, queerbaiting verificou-se em várias circunstâncias - embora, como disse acima, o facto de o Shiro ter sido declarado lgbt+ em nada seja queerbaiting (felizmente). Mas algumas das iscas foram...:
Crossover entre ship Klance e Spideypool [créditos] |
- - O facto de a Lauren ter dito que veríamos mais do relacionamento entre Shiro e Adam [fonte na secção das considerações] quando, na verdade, a única coisa que vemos do relacionamento é o seu término numa das memórias do Shiro e, no presente, o Adam a morrer em combate e o Shiro a lamentar (Por segundos! Até a Pidge a chorar pelo irmão que afinal não estava morto teve mais screen time!) não o ter reencontrado.
- - Pósteres da sétima temporada que aludiam ao facto de que, tal como dissera Lauren, veríamos mais do relacionamento entre o Shiro e o Adam, e que o Adam seria mais do que uma personagem secundária - caso contrário, porquê que ele apareceria em [três][dos][pósteres]? Vale notar ainda que, nesse primeiro, o facto de o Keith aparecer do outro lado de Shiro ao mesmo nível que o Adam ainda podia ser interpretado como um potencial triângulo amoroso, especialmente considerando que o Keith é extremamente próximo de Shiro e até já disse que o amava, mesmo que inserido na frase "You're my brother, I love you!"
- - Pósteres da sétima temporada que aludiam ao ship Klance por fazerem um paralelo com os pósteres do Shiro e do Adam, que sabíamos que tinham sido um casal, implicando portanto uma similaridade no relacionamento entre o Keith e o Lance. Refiro-me a [este].
- - Comentários feitos pela Netflix comparando Voltron com Queer Eye e dizendo que shipava Klance [fonte na secção de considerações], insinuando tanto representatividade lgbt+ extensa como, de certa forma, que o ship Klance se poderia concretizar.
- - Contudo, ainda em relação a Klance, aquilo que é entregue na temporada em si são indícios de que Keith e Lance terminarão ambos em relacionamentos cis-heteronormativos.
- Parece que a Allura começou a retribuir os sentimentos do Lance, mesmo que não tenham tido praticamente interações desde que ela terminou com o Lotor (levando muita gente a criticar o mau desenvolvimento, embora haja [uma exceção que eu considero uma opinião válida]), e contrariando o que tinha sido dito numa entrevista [creditada na secção das considerações] sobre ser um deserviço fazer o Lance ser a segunda escolha da Allura. Muita gente também critica a mensagem que isso irá transmitir: de que não há problema em continuar a chatear uma rapariga de quem se gosta até ela ceder - embora eu não interprete a atitude do Lance como insistência e, portanto, não partilhe dessa opinião. ~
pessoalmente, ainda acho que Allurance faz mais sentido que o ship seguinte~ - Quanto a Keith, vemos o início do que pode ser entendido como potencial amoroso entre ele e Acxa - mesmo que já se tivessem salvo mutuamente por várias vezes, é possível que ainda nem sequer saibam o nome um do outro e não tiveram mais nenhum tipo de interação antes da cena que levou a entendê-los como futuro par romântico. Muita gente até tinha a teoria de que eles seriam relevados meio-irmãos, o que só mostra o quanto o relacionamento deles pode ser considerado repentino.
- Vale lembrar que nenhum destes relacionamentos se concretizou e os produtores ainda podem desenvolver algo diferente. Klance ou não, deduzir que os pares finais serão Lance x Allura e Keith x Acxa é saltar para conclusões, e deduzir que nenhuma dessas personagens será lgbt+ antes da última temporada, acusando os produtores de forçar casais heteronormativos, pode ser uma atitude precipitada. Ou seja, considero isso uma forma menor de queerbaiting (
sim, porque o problema seria o queerbaiting, não os casais em si). - - A arte oficial [mostrada na secção de considerações] onde os cartazes segurados pelas personagens têm relação com arcos onde são abordadas caraterísticas delas - as mesmas que estão escritas nos cartazes: Pidge tinha-se disfarçado de rapaz até ser relevada como rapariga, e a primeira pessoas a confrontá-la com isso foi Allura, outra mulher - ambas estão a segurar o cartaz que diz "género"; Keith foi revelado meio Galra, e a primeira pessoa que teve uma conversa amigável com ele acerca do assunto foi o Hunk, que tem pele escura e é Samoano - estão a segurar o cartaz que diz "raça"; Shiro é lgbt+, muita gente dizendo que ele é gay embora, apesar do relacionamento com Adam, os produtores tenham deixado claro que não lhe vão por uma label específica - e, juntamente com o Lance, está a segurar um cartaz que diz "lgbt". Seguindo a lógica do que já foi revelado, o Lance tem de estar no espectro lgbt+, contudo, até agora, não há nada que o dê a entender e, considerando os indícios de que ele ficará com a Allura, cada vez mais as pessoas receiam que seja só mais publicidade enganosa. De novo, ainda não dá para garantir que isto seja queerbating, considerando que ainda falta uma temporada.
Como é que os problemas podiam ser resolvidos?
Será difícil, mas não impossível, remediar as asneiras feitas na temporada que falta - e fazer isso devia ser uma decisão consciente, acompanhada de um pedido de desculpas aos fãs lgbt+ por parta da equipa de produção por terem iludido as pessoas e cometido tropes que magoam tanta gente, sem ter nada a amenizá-las. Mas como não adianta pedir desculpas por algo que não vai ser remediado, aqui estão medidas a tomar:
- - Podiam ser introduzidas mais personagens lgbt+, para não parecer que Shiro, a única mostrada até agora, está a sofrer injustamente. Mais que isso, podiam introduzir casais queer saudáveis (por favor não façam da Ezor e da Zehtird [psycho-lesbians]) e dar um final feliz pelo menos a um deles.
- - Podiam atingir/matar mais personagens cis-hétero, incluindo famílias e casais, para que Shiro e Adam não fossem os únicos atingidos até agora (embora, como eu tenha dito ao falar da trope Bury Your Gays, isso por si não resolva o problema sem a medida anterior)
- - Evitar marketing que dá esperanças falsas às pessoas de se verem representadas, e que implica coias que não irão acontecer no geral.
Lance com roupas consideradas femininas [créditos] |
- - Axca confessa ao Keith que gosta dele, ele rejeita-a e diz que é gay, e fica com o Lance ou com o Shiro
- - Axca é revelada irmã do Keith e, de novo, ele fica com o Lance ou com o Shiro
- - Lance acaba por não ficar com a Allura mas sim num relacionamento com alguém do mesmo género
- - Mesmo que Lance fique com a Allura ou uma mulher, é revelado que ele é bi/pan/wtv e gosta de pessoas do mesmo género
- - Lance é revelado uma personagem não-binária - e considerando a forma como adere tanto a feminilidade como masculinidade, isso podia ser aproveitado (embora expressão de género não tenha correlação direta com a sua identidade). Além do mais, há [cenas] que podem ser interpretadas como se ele não fosse homem nem mulher exclusivamente.
- - Fazer o Shiro terminar num relacionamento com aoutro homem, não necessariamente o Keith, embora fosse com quem faria mais sentido considerando que não há tempo para ele desenvolver um laço muito profundo com mais ninguém.
- - Ter uma personagem trans, como a Romelle [teoria de que ela é trans porque as suas marcas altean são azuis quando as mulheres altean as costumam ter rosa].
- - Casais lgbt+ entre personagens secundárias. Sei lá, muita gente está a criar ships novos com o grupinho do James.
Eu já escrevi coisas problemáticas parecidas com as que Voltron cometeu, e aprendi com elas. O facto de os produtores não terem aprendido mostra que não se esforçam por pesquisar como criar boa representatividade lgbt+ nem estão a ouvir o que os fãs lgbt+ estão a dizer, caso contrário, já teriam pedido desculpa, feito esforços paa corrigir o problema e entendido que [lgbt fans deserve better]. Caramba, nem o que aconteceu com The100 ensinou alguma coisa?
Era isso, sapinhos. Não façam comentários agressivos, ou serão apagados. E se alguém disser que pessoas lgbt+ estão chateadas por causa da ships eu vou recomendar que volte para a escola primária para aprender a ler, porque claramente não processou nada do que está neste post.