{resenha} Pantera negra


Como de costume, em vez de ao domingo postar na coluna diária "Recomendações do dia", faço um post especial. Desta vez, o que trago é a resenha do filme Pantera Negra, que já vi há imenso tempo mas ainda é o melhor filme da Marvel que eu vi, o melhor filme que vi desde que estreou no cinema, e provavelmente está no meu top 10 de filmes com pessoas reais favoritos. E como eu fui ver em grande parte para dar suporte à comunidade negra - afinal, quanto mais gente for ver filmes com minorias sociais, menos desculpas tem Hollywood para dizer que "minorias não vendem" - posso dizer que rebentou a escala das minhas expectativas.

Já agora, se alguém tiver caído aqui e recear que eu seja só mais uma pessoa branca a fazer uma análise superficial, fear not - eu sou de facto uma pessoa branca e certamente as minhas experiências influenciaram a maneira como eu vivi o filme, mas eu tenho o cuidado de me informar sobre a opinião das pessoas representadas em qualquer tipo de mídia e, neste caso, eu irei até recomendar aquelas de que mais gostei.

Parte técnica:
"It’s finally here – and it couldn’t have come at a better time. Black Panther is an epic that doesn’t walk, talk or kick ass like any other Marvel movie – an exhilarating triumph on every level from writing, directing, acting, production design, costumes, music, special effects to you name it." [fonte]
  • Sinopse: Black Panther segue T’Challa que, depois dos eventos de Captain America: Civil War, regressa a casa, a isolada e tecnologicamente avançada Nação Africana de Wakanda, para tomar o seu lugar como Rei. No entanto, quando um velho inimigo reaparece no radar, o manto de T’Challa como Pantera Negra é posto à prova quando se vê arrastado para um conflito que coloca o destino de Wakanda, e do mundo, em risco.
  • Efeitos: Maravilhosos, ao nível da Marvel - principalmente no que toca a poderes. A cidade fictícia de Wakanda é provavelmente das mais belas que já vi, tecnologicamente avançada mas integrada na natureza, e com um estilo que, apesar de ser futurista, capta típicos padrões e cores africanas. Não há nada para além da cidade - aliás, não percebi se só vimos uma cidade de Wakanda ou a nação inteira - que eu destaque em comparação com filmes anteriores, mas isso é porque a qualidade se mantém. 
  • Cast: Eu sou a pior pessoa para falar disto, dado que não percebo nada de atores. Mas a atuação pareceu-me convincente por parte de todo o cast, e a melhor parte é que o filme deu oportunidade a IMENSAS pessoas negras, todas juntas no mesmo filme e com um sotaque que não era aquele americano padrão. Foi uma dose de black pride capaz de sarar a alma >.< Os atores brancos que mais se destacaram são bastante conhecidos, tanto o que faz de agente da CIA como o pseudo-vilão que quer ficar rico à custa dos recursos de Wakanda. 
  • Trilha sonora: No mínimo pode dizer-se que é original, pois como são poucos os filmes que se passam em África e em zonas que são são mais habitadas por pessoas pobres, negras e marginalizadas num geral, poucos filmes usam músicas que combinem com esse tipo de ambientação.
  • Ritmo: Bom, embora eu prefira o da segunda metade do filme. No começo o ritmo também é ótimo, mas como as personagens principais do filme se encontravam em locais diferentes, demorou um nadita a reuni-las todas... e a encontrar o vilão... e a definir qual o rumo que o filme iria tomar. Isto dito, eu não acho que essas cenas iniciais sejam um defeito, pois serviram como introdução para as diferentes situações que estavam a ocorrer em paralelo e para nos apresentar ao mundo, às personagens, às relações que já existiam entre elas (todas muito naturais e lindas de ver <3), e à plural fonte de obstáculos. 
Resenha (spoilers serão assinalados):
O sucesso de Black Panther capta perfeitamente o resultado de um estúdio famoso investir numa boa representatividade. Ter mulheres fortes, personagens negras ou lgbt+ não afasta as pessoas, não serve unicamente propósitos políticos, e ainda fica mais no coração de quem se consegue identificar. Representatividade é TÃAAAAAAOO importante para quem nunca se vê representado, e até mesmo para quem se vê, porque isso permite a - neste caso, pessoas brancas - criar empatia com quem não partilha as próprias caraterísticas e a fazer algo que pessoas menos representadas sempre aprenderam a fazer - ver-se refletido em pessoas diferentes de si, pois no fundo somos todos humanos.

E este filme foi de facto muito humano...

De todos os filmes da Marvel que já vi (não sou nenhume expert na marvel, mas já vi um número razoável), este é provavelmente o que melhor trabalha um conflito de valores. Temos um protagonista que tem de aprender a desculpar - mas não fechar os olhos aos - erros do pai que amava após se tornar rei de Wakanda, um vilão que é na verdade um anti-vilão - isto é, um vilão que faz coisas más por uma razão que acredita ser boa - um agente da CIA que tem de escolher entre respeitar um povo ou extorquir-lhe informações, e perspetivas diferentes entre as personagens do círculo de confiança do rei. Aliás, há visões conflitantes até entre as duas pessoas de um casal, e não é por se amarem que deixam de fazer aquilo que acreditam ser o mais correto. Alguns dos temas são bem tocantes e parecem ter sido escolhidos a dedo para ecoar com as coisas que se têm passado hoje em dia, e quase todas as críticas do filme mencionam vários deles, o que por si só prova o seu impacto. Esta é apenas uma lista nada exaustiva:
  • Perdoar os antepassados é importante para se conseguir seguir em frente
  • Deve-se assumir a responsabilidade de erros que não foram cometidos por nós, mas pelos nossos
  • Amar alguém não é razão para ignorar os seus erros
  • Ter dever para com algo pode não implicar servir esse algo, mas salvá-lo
  • Não há problema em perder e voltar a tentar
  • Auto-proteção não é desculpa para fechar os olhos aos problemas do mundo quando se tem meios para os resolver...
  • ...contudo, aprender a pensar "como o inimigo" torna-nos iguais ao que queremos derrubar
  • Por muito que a dor de alguém seja válida, ódio - embora compreensível - não é a solução
Provavelmente alguns de vocês ainda estão perdidos, então vou mencionar informação relevante NÃO SPOILER para entenderem o contexto do filme. T'Challa, o protagonista, é filho de T'Chaka, que foi morto num dos filmes anteriores da Marvel. Ele tornou-se Pantera Negra por herança, mas no dia da coroação como rei, esse cargo pode ser atribuído a outra pessoa de linhagem real, desde que o desafiem e vençam em combate - combate esse que pode ser exigido mesmo após a coroação. Ele é apontado portanto como rei de Wakanda, em África, que é considerado um país de terceiro mundo por quem não é Wakandiano, já que a verdadeira aparência da nação está oculta através de uma barreira tecnológica como forma de proteção contra colonizadores e pessoas brancas com mentalidade/objetivos semelhantes. Wakanda tornou-se assim tão avançada por conta de um "metal"  - na verdade, a substância é designada por "erva em forma de coração" - chamado vibranium, que provém de um meteorito que caiu na terra, em África, numa altura em que 5 tribos estavam em guerra. Ao ser ingerida por um guerreiro, foi criado o primeiro Pantera Negra, e a partir daí 4 das tribos originais uniram-se e alcançaram a paz em Wakanda. 

Agora vamos a [spoilers]: O problema do filme surge quando Killmonger, um wakandiano que cresceu na América e cujo pai (também wakandiano) foi morto pelo pai de T'Challa (seu irmão), decide que está farto da maneira como pessoas negras não-wakandianas são tratadas pela sociedade americana. O pai dele foi morto por ter tentado revelar alguns das tecnologias de Wakanda à América, mesmo que só as quisesse passar a membros da comunidade negra como meio de se protegerem da polícia. Por outras palavras, Killmonger cresceu com um misto de sentimentos de amargura e frustração por saber que Wakanda, uma parte de si tão significativa como a parte americana, se recusava a ajudar a outra parte de quem ele era. Wakanda tinha os meios para ajudar os negros americanos, mas abandonava-os... e ainda matava quem tentava ajudar. Para culminar, ele nunca usufruiu dos privilégios que a sua origem Wakandiana lhe daria, e não tem a menor noção de com o quê que as suas origens se parecem. [fim dos spoilers]

"By now viewers have two radical imaginings in front of them: an immensely rich and flourishing advanced African nation that is sealed off from white colonialism and supremacy; and a few black Wakandans with a vision of global black solidarity who are determined to use Wakanda’s privilege to emancipate all black people." [fonte]

Claro que um filme não se pode fazer só de enredo-pensado-para-explorar-conflitos-ideológicos. O filme tem momentos de humor e de seriedade que nos fazem querer saber ainda mais das personagens, e não deixa de ser um filme de super-heróis, funcionando apesar de tudo como um stand-alone.

Representatividade

Representatividade etno-racial:

Todo o cast é negro, incluindo o "vilão" principal, o que foi ótimo para não parecer que isto era uma luta negros vs brancos e para demonstrar que pessoas de uma "minoria" nao são um monólito, tendo experiências e visões diferentes.

A experiência de Killmonger é mais identificável para a maioria dos afro-americanos que a do próprio T'Challa. Por exemplo, elas:
  • Também têm a sua origem africana questionada tanto por americanos como por africanos
  • Vivem às margens de ambos os "mundos", nem sempre sendo aceites por eles (demasiado brancas para ser negras e demasiado negras para ser brancas, são acusadas de privilégio por ter a pele mais clara mas não usufruem realmente desse privilégio e ainda têm a sua identidade apagada)
  • Desconhecem a sua história e antepassados (T'Challa tinha uma família inteira orgulhosa, Killmonger só tinha um pai mal sucedido)
  • São obrigados a ver partes da sua identidade em conflito ou, pelo menos, a ignorar-se
As tribos foram muito bem captadas, são diversas em vários aspetos. O filme exala Black Pride a tempo todo: na dança, nas vestimentas, nos cabelos, até nas bocas que algumas personagens mandam a personagens brancas... A infraestrutura de wakanda, como já disse, é tecnologicamente incrível mas mantém um design africano e, ao contrário do que aconteceu em Mulher Maravilha, não equacionam uma sociedade que se isolou do mundo com uma sociedade primitiva - pelo contrário, foi magnÍfico terem-na tornado tão tecnologicamente avançada. Isso ajuda a combater a ideia de que grupos minoritários estão dependentes das maiorias para chegar longe.

Representatividade de género:

Há IMENSAS personagens femininas com papel, até mais do que homens, e são mulheres diversas: uma guerreira, uma espiã, uma cientista... todas com as suas personalidades, fortes de maneiras distintas, não havendo relações de rivalidade mesquinha. Aliás, eu adorei a personalidade da cientista e irmã do T'Challa, sempre a provocar o irmão >.< E a melhor parte: há interações entre elas! Muitas, diria eu, e quando Hollywood só sabe como criar personagens femininas decentes espalhadas por pontos distintos do mundo, ter um grupinho particularmente próximo é um feito e tanto.

Foi bom como mostraram que o protagonista pode ter relacionamentos próximos com mulheres sem serem apenas de amor. A guarda-costas, a irmã e a mãe foram 3 mulheres tão relevantes como aquela de quem ele gostava, e as 4 foram bem desenvolvidas e interligadas. A irmã, Shuri, é cientista e o cérebro por trás do desenvolvimento tecnológico de Wakanda, providenciando toda a gente - especialmente pessoas importantes como o irmão - com os seus novos designs. A Nakia é muito mais que interesse amoroso, pondo a sua missão como espiã e a necessidade de ajudar as pessoas quem não vivem em Wakanda à frente dos seus sentimentos por T'Challa, disposta a fazê-lo até ser possível considerar as duas coisas. A Okoye é a guarda-costas do rei e está decidida a fazer o melhor pelo seu povo, mesmo que isso implicasse opor-se às pessoas que ama - incluindo as outras mulheres que eu mencionei. E a mãe governava Wakanda na ausência de outras pessoas.

O filme tem algumas cenas que poderiam ser até consideradas ousadas, como ter uma batalha que pode ser encarada como mulheres VS homens, embora no fundo seja uma luta de ideais apenas entre grupos de guerreiros constituídos apenas por pessoas de um género só. Algumas pessoas comentaram até o quão único é ver algo assim, pois em África as mulheres não costumam ter esse tipo de papel e filmes com mulheres negras também não costumam apresentá-las em posições assim, pelo que o momento foi muito relevante para quem vive naquela interseção do que é ser mulher E negra, em particular de origem africana.

E convenhamos que há muita gente a achar que o filme de vez em quando decide arrumar o protagonista para focar na Okoye ;)

Já ouviram falar no Teste de Bechdel? É um pequeno teste feminista para fazer a histórias que implica respeito mínimo por mulheres, exigindo 3 coisas: Que o filme tenha pelo menos duas personagens mulheres, que elas conversem, e que a conversa não seja sobre homens ou filhos. Pois este filme não só passa o teste, como arrebenta com ele. E passa o Mako Mori Test. E o Sexy Lamp Test. E o Ellen Willis test. Sinceramente, eu acho que o filme arrasa com [todos os testes que eu conheço]. Damn, provavelmente até passa o Teste Furiosa, que normalmente implica passar os 3 primeiros testes que eu mencionei aqui e ainda fazer as pessoas discutir na internet por ser demasiado feminista. E aintes que alguém ache que este filme é misandrista ou coisa assim, é muito simples: basta reverter (de uma perspetiva binária) os géneros mencionados nos testes, e ver que sim, todos continuam a passar estando em questão os direitos dos homens. 

Restante representatividade:

Nem tudo são rosas: foi ocultada representatividade lgbt+ canon nas comics, entre Danai Gurira's Okoye e Florence Kasumba's Ayo. Aliás, uma dessas personagens até gosta de um homem no filme, não sei se isso se verifica nas comics ou não... Por outras palavras, [isto].

Pensamentos finais
Claro que nem todas as críticas são positivas, e embora eu não goste muito deste canal, [estas] são bastante válidas. São basicamente plotholes. Isto dito, para mim não arruinam o filme porque todos os filmes têm falhas dessas e eu diria que algumas coisas foram propositadamente ignoradas para focar em questões mais éticas e tal. Lá está, quem fez a review parece que não tirou grande coisa do diálogo que basicamente transmitia que querer saber de Wakanda não implicava obdecer às suas leis, mas salvar a Nação. E eu discordo totalmente da ideologia da crítica. Mas vá, são críticas consistentes.

Mesmo assim, a própria atriz de Okoye até afirmou que filme é um [convite à revolução], e tenho de concordar: é empoderador e passa mensagens clássicas mas que incentivam a agir. Diga-se de passagem, não há muitos filmes que consigam ser tão bem sucedidos a todos os níveis - técnicos e éticos - que este foi. 

Tenho ainda de recomendar estas resenhas: [www www www]. Era isso, amanhã volto com a coluna diária ^^
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